sexta-feira, 8 de junho de 2012

Revista Época Negócios: Campo Alegre em O lado D do Brasil

Um mercado ávido para ser descoberto. Campo Alegre - Alagoas, é o melhor símbolo da vida à margem do capitalismo moderno. O que a população de lá quer da sua empresa. (Foto: Claus Lehmann)

Todas as cidades do interior têm seus loucos de estimação. O de Campo Alegre é disciplinado. Às quartas-feiras, 20h em ponto, ele coloca uma caixa de som portátil no canteiro central da cidade e, empunhando um microfone, começa uma pregação. Declama trechos da Bíblia, embora nunca a tenha lido. É analfabeto. A lenda conta que aprendeu de ouvido, escutando os pastores. Depois de meia hora de pregação, ergue os braços e espalha bênçãos pelo ar – e para o ar, já que não costuma haver ninguém na audiência. “Só ele mesmo se ouve”, diz um homem de meia-idade que, sentado em um canto da praça, conversa com amigos sobre “ah, você sabe, futebol, política e galho”. Por galho, esclareça-se: cornos, maridos traídos. Mais adiante, garotos jogam pelada no meio da rua. Alguém passa de bicicleta. Alguém fecha a porta de um bar. Em pouco tempo, não há sinal de gente na rua: nem do pregador, nem dos amigos, nem da molecada. São 22h e Campo Alegre, a cidade mais classe D do Brasil, já se recolheu para dormir.

Distante 110 quilômetros de Maceió, Campo Alegre é um típico município do interior nordestino, mas um dado o coloca em relevo em relação às outras cidades: é o lugar que concentra a maior quantidade de famílias classe D do país. De sua população de 50 mil habitantes, 65% das famílias vivem com uma renda entre um e dois salários mínimos.

Até pouco tempo atrás, esse marasmo que predomina à noite não tinha diferença com o que havia durante o dia. Hoje não é mais assim. O agito diurno mostra o impacto que o aumento de renda da classe D está tendo em cidades do interior. Em Campo Alegre, a resposta é muito clara: separou a noite do dia.

A onda de novos negócios abertos em Campo Alegre é uma clara mostra do impacto causado pelo aumento da renda na base da pirâmide

A mesma rua onde o crente declamava a Bíblia na manhã seguinte testemunha um ziriguidum sem-fim de gente entrando e saindo das lojas e supermercados – que se multiplicaram na cidade nos últimos dois anos. Um deles foi o varejista G Barbosa. Com foco no Nordeste, a cadeia abriu a primeira filial em Campo Alegre há alguns meses. Na época, um dos passatempos preferidos das pessoas era andar pelos corredores da nova loja. 

De uns tempos para cá, até filas passaram a existir. Mas elas são bem-vindas: indicam que, finalmente, há bancos na cidade: o Bradesco e o do Brasil. A Caixa Econômica deve vir em breve. As pessoas também começaram a comer mais fora e isso fez surgir novas modalidades culinárias na cidade, tais como... pizza. Academias de ginástica já são duas, porque a classe D também quer cuidar do corpo. E agora pode, a R$ 24 por mês.

Um par de óculos por hora

Com essa nova dinâmica, a população de Campo Alegre, mais acostumada a caricaturas de loucos, coronéis e pastores, vê agora nascer um personagem até então raríssimo: o empreendedor.

Alguns moradores perceberam que o aumento do poder aquisitivo está dando chance para a criação de novos negócios. Há um ano, Nebyson Nelson da Silva Arruda se lançou a montar uma lanchonete. Preparou um cardápio caprichado: cachorro-quente, aqui chamado de “passaporte”, em várias modalidades, incrementadas com iguarias como carne-seca e calabresa. O lugar virou um ponto tão frequentado que passou a abrir ao meio-dia, para servir almoços feitos na cozinha comandada pela mulher de Nebyson. O objetivo agora é terminar a construção de um forno a lenha e começar a funcionar também como pizzaria – algo até então somente disponível à classe C, que podia ir até a cidade vizinha. “Nós abrimos o negócio com a ideia de crescer aos poucos, conforme aumentasse a demanda”, diz Arruda. “Pela rapidez com que isso aconteceu, vimos que havia muita.”

A perspectiva de fazer negócios em Campo Alegre está atraindo gente que nunca sonhou colocar os pés ali. São pequenos empreendedores, como Adriana Montenegro. Com o marido e duas filhas, ela mudou-se de Maceió para abrir uma ótica. Os amigos da capital foram céticos. Disseram que ela só venderia um par de óculos por semana. Erraram por pouco: ela vende um a cada hora. O que fez para atrair tanta gente? Ela parcela em quantas vezes o cliente puder pagar. Só pode R$ 50? Então vão ser parcelas de R$ 50. “Sei que o cliente vai demorar mais para terminar de pagar. Mas faz propaganda por aí e atrai ainda mais gente”, diz Adriana. “No dia do pagamento, eles não atrasam e vêm à loja com cestas de alimentos para agradecer. Mais um pouco eu nem preciso fazer feira”, diz.

Negócios como o de Adriana estão provocando uma saudável dinâmica de concorrência no mercado e tornando possível o acesso a novos serviços. A classe D está aprendendo que o dinheiro pode não comprar a felicidade, mas pelo menos paga o dentista para sorrir mais bonito. Dalva Ramos explica: por uma taxa de R$ 25 para se associar, as pessoas podem incluir no plano até seis pessoas e, com isso, ter tratamento dentário com 60% de desconto. Vendedora de planos odontológicos, ela varre a cidade para angariar mais clientes.

O serviço, pioneiro em Campo Alegre, dá outra perspectiva para quem antes dependia somente do sistema público de saúde. Está ajudando também a cortar um círculo vicioso funesto: quando um paciente consegue uma consulta pelo SUS, já pede para o dentista arrancar o dente (para não prolongar a dor por mais tempo do que demorou a espera). “Os dentistas já até estavam acostumados e achavam isso comum”, diz Dalva.
Empreendedora com ressalvas
Com a “graça de Deus”, Maria José abriu um salão de beleza. Só não pode atender homens. A restrição não veio de Deus, veio do marido (Foto: Claus Lehmann)

A Bíblia, o salão de beleza e a moeda da padaria

É certo que os novos negócios da cidade estão interessados em preencher lacunas de mercado desguarnecidas. Mas também é verdade que eles surgem adaptando-se às características do lugar e do consumidor. Uma delas é o machismo. O homem tem uma voz imperativa e decisiva dentro dos lares. Maria José dos Santos, a Zezé, sabe disso muito bem. De unhas pintadas, cabelo crespo vermelho e sapato de plataforma, sempre foi preocupada com a aparência. Depois de trabalhar – com as bênçãos do marido – como feirante, sacoleira e vendedora de produtos de beleza, investiu em um curso de cabeleireira. Quando quis abrir o próprio salão de beleza, porém, entrou em cena o marido: salão de beleza, tudo bem, mas mulher minha não vai pôr a mão em cabelo de homem. Feito: nasceu o Salão Stillu’s de Mulher.

A cultura machista só não é o traço mais característico da cidade porque nesse quesito quem ganha é a religião, como bem mostram as 27 igrejas da cidade. É comum que se frequente mais de uma ao mesmo tempo. Sim, pode. Só não pode é ser ateu.

Os cidadãos pediam aos dentistas que lhes arrancassem o dente dolorido – porque não aguentariam a espera até outra consulta pelo SUS. Agora, já têm oferta de plano odontológico, por R$ 25

Nunca se perde uma oportunidade de catequizar o interlocutor, mencionando Deus, Jesus ou Jeová, inclusive numa conversa com estranhos numa fila do caixa: “Tá tudo errado, viu? Tudo errado. A Bíblia não aprova nada dessas coisas que estão acontecendo”. Sem introdução ou cerimônias, dona Maria do Carmo começa a falar e, em segundos, já está metralhando a pouca-vergonha das novelas, o pecado do divórcio e a falta de respeito do beijo na boca. “E a safadeza dessas moças que começam a namorar cedo?”

Ela paga a conta da padaria e recebe um papel escrito à mão pela moça do caixa. É um vale, dado a ela porque não havia troco. Com naturalidade, Maria do Carmo guarda o papel dentro da carteira (afinal, equivale a dinheiro) e conclui a catequese. “É o que eu sempre digo, meu filho. Virgindade é como mãe. É só uma. Por isso tem de preservar”, diz ela, colocando a mão na boca porque “desculpe, eu acabei de comer”. E vai embora.
A fé que move o agreste
As estátuas velhas num canteiro de Campo Alegre mostram como as regras da fé ditam comportamentos: jogá-las fora seria pecado (Foto: Claus Lehmann)

Tia Lu, a professora, e seu congresso em Brasília

Dona Maria do Carmo ao menos pode reclamar do mundo de boca cheia. Ela já soube o que é reclamar de barriga vazia, quando foi deixada pelo marido com sete filhos para criar, há dez anos. Nunca se casou de novo... e a razão está na Bíblia. Uma das explicações para tanta fé está na óbvia dificuldade financeira e material que já viveram as pessoas da região. As tragédias pessoais estão em cada casa.

Alderisa Amaro da Silva, 40 anos, abre a porta que leva até sua casa, nos fundos de sua lanchonete. São quatro cômodos, com mais espaços vazios do que móveis preenchendo-os. Em um dos quartos, um ventilador alivia um pouco o calor do marido, que está há nove anos na cama. Ficou paraplégico por causa de um acidente de trabalho. Com o dinheiro da indenização a mulher comprou o imóvel e, com um gasto a menos para se preocupar, montou uma lanchonete. Chega a vender até 200 salgados por dia (R$ 0,50 os doces, R$ 0,90 os salgados). Deu uma incrementada na aposentadoria do marido. Da lanchonete, tira o sustento para a família. A aposentadoria por invalidez dele é toda gasta em remédios.

Isso explica o porquê de tantas farmácias na rua principal de Campo Alegre. “O que mais sai são remédios anti-inflamatórios”, diz a vendedora de uma delas, aberta há seis meses. “O pessoal sente muita dor, né?”, complementa, explicando sobre as dificuldades de quem corta cana, uma das principais atividades dos campo-alegrenses.

Enquanto ela fala, uma mulher de vestido cruza a rua correndo. Trata-se de outro caricato personagem que povoa as ruas deste interior classe D: o da professora sabichona, chamada carinhosamente de Tia Lu. Ressalta o tempo inteiro que no dia seguinte vai para um congresso em Brasília. Tem pouco tempo para falar, mas veio tirar satisfação sobre o que dois estranhos faziam em sua cidade. “Sou muito ciumenta de Campo Alegre. Se estão falando mal dela, eu quero saber e não vou deixar”, diz. Depois de esclarecida sobre a reportagem, acalmou-se. Até convidou para ir à sua casa mais tarde. “Tenho de ir embora porque, você sabe, amanhã eu vou a um congresso em Brasília.”

Faltam pedreiro e cozinheira
Antônio e Maura Aprigio da Silva, proprietários do hotel fazenda da região. A falta de mão de obra impede que eles possam ampliar a área de recreação e oferecer mais serviços (Foto: Claus Lehmann)

O repórter, Michel Teló e as câmeras do prefeito

Fica evidente a impossibilidade de qualquer estranho passar incógnito em Campo Alegre. Tia Lu não foi a única a estranhar o movimento. Minha chegada à cidade levantou uma onda de cochichos e suspeitas. Em baixas vozes, as pessoas se perguntavam quem seriam os forasteiros. Houve boatos de que Michel Teló estaria na cidade. Alguns se surpreendiam quando dizíamos ser jornalistas. Enquanto conversávamos com uma vendedora ambulante, um homem montado em uma moto se aproximou e perguntou o que fazíamos. Assim que ouviu a resposta, arrancou sem dar tempo de perguntar quem era. Mais tarde soubemos quem o havia enviado.

“Fui eu que mandei. Queria saber quem são e o que estão fazendo aqui”, diz José Maurício Tenório, o prefeito de Campo Alegre, num tom muito tranquilo e sincero. “Sabíamos que vocês estavam por aqui desde o momento em que botaram os pés na cidade.” No que termina de falar, alguém mostra uma tela de computador intercalando imagens de câmeras. Está aí uma das incoerências de Campo (não tão) Alegre: na cidade onde se demora dez minutos para carregar uma página de internet há câmeras espalhadas por todos os cantos, ligadas ao computador da prefeitura. É um Big Brother do agreste.

A principal justificativa para o monitoramento é a segurança. Há pouco tempo houve uma onda de assaltos “cometidos por pessoas que vieram de fora”. A outra razão era para checar se o burburinho era coisa da oposição. Mas isso não seria natural em uma democracia? “Ainda é cedo para começarem a fazer campanha”, conta o prefeito. “Só a partir de julho. Agora é proibido.”

Uma terceira razão – mas esta ninguém mencionou – é que imprensa é coisa rara por ali. A vigilância ao poder, consequentemente, também. O único meio de comunicação da cidade é a rádio Campo Alegre FM, cuja programação é basicamente religiosa. Um locutor, Marcio José, mantém um blog com notícias locais. Mas é mais fácil acessar a informação fora da cidade do que vivendo lá. A conexão com a internet é péssima.

Todos os dias, cerca de 300 jovens lotam os ônibus que saem em direção às universidades da região. Cinco anos atrás, não havia nenhum

Essa sensação de isolamento imprime um ar viciado, em que a política joga um papel muito forte. Existe uma razão para isso. Um terço da população vive do funcionalismo público. O segundo maior empregador do lugar é a usina de cana-de-açúcar da cidade – que pertence à família do prefeito.

Agrava esse cenário o fato de que a população ainda depende fortemente de ajuda assistencial. Com 5,2 mil famílias beneficiadas, o Bolsa Família ajuda indiretamente cerca de metade das pessoas de Campo Alegre. Essa alta dependência do Estado e dos programas assistencialistas ainda não tem hora para terminar. Engravidar, por exemplo, faz parte de estratégias para ganhar o benefício do Bolsa Família. Agora que o valor ganhou reajuste, já se ouvem mulheres querendo saber se é possível desfazer a operação de laqueadura para engravidar de novo.
Ao lado de lojas sem nome, típicas do interior, já se enxergam grifes como O Boticário. Até gente da capital tem aberto negócios lá – como Adriana Montenegro, que vende óculos com prestação sob medida (Foto: Claus Lehmann)

O curso profissionalizante... sem alunos

Essa dependência é um entrave para a cidade aproveitar essa primeira injeção de renda e alavancar um ciclo econômico sustentável. Também impede que se levem a cabo novos empreendimentos. No camping Belo Horizonte, o mais luxuoso da cidade (a entrada custa R$ 10), faltou cozinheiro. Os donos do lugar fizeram, então, uma parceria com o Sebrae para dar aulas profissionalizantes de culinária. O curso não saiu porque faltou interesse para formar uma turma de 30 pessoas. “Tive de trazer gente de fora porque não encontrei na cidade quem se interessasse em aprender uma nova profissão”, diz a proprietária, Maura Aprigio da Silva.

Sinais de acomodação e parasitismo são de alguma maneira esperados em lugares que dependem muito de programas assistencialistas. O que chama a atenção em Campo Alegre, porém, é que agora existe também o outro lado: diariamente, dezenas de ônibus partem da cidade levando mais de 300 jovens para as universidades da região, em Arapiraca e Maceió. É um avanço, se considerando que em 2005 não havia um único universitário ali.

Outro exemplo está nas escolas. A secretária da Educação tem os números na ponta da língua: o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) subiu de 2,3, em 2005, para 4,0 na última avaliação – e diz, com orgulho, que até o fim deste ano as crianças terão aulas em lousas eletrônicas. Esse é, sem dúvida, o principal desafio não apenas de Campo Alegre, mas de toda a população da base da pirâmide. Para deixar a pobreza definitivamente para trás, para criar mais serviços, mais escolha política, mais empreendedorismo e mais oportunidades (incluindo aí mais produtos), a classe D precisa de educação classe A.
A sede do Bolsa Família de Campo Alegre, que concede o benefício a mais de 5 mil famílias (Foto: Claus Lehmann)

O empurrão dos programas
Eles turbinaram o comércio local, mas criaram um círculo vicioso

Os programas assistenciais foram fundamentais para dar um sopro de vida no consumo em Campo Alegre. Mas criaram também um comportamento vicioso. Com os constantes reajustes do salário, engravidar virou um negócio. Além disso, é prática comum entre os trabalhadores pedir para não ser registrado em carteira e, assim, ter direito ao benefício.

Por Revista Época Negócios

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